*Letícia Delgado
A chamada Operação Contenção, nos complexos da Penha e do Alemão, deixa claro — mais uma vez — o fracasso daquilo que se convencionou chamar de “política de segurança pública” do Rio de Janeiro. Uma política que privilegia o confronto em vez da inteligência, que aposta na força em vez da prevenção, e que segue tratando a vida como algo descartável.
Uma política que expõe policiais, trabalhadores, homens e mulheres de carne e osso a riscos diários, sem lhes garantir dignidade, estrutura, acolhimento psicológico ou reconhecimento real. Uma política que mata civis, normaliza o medo, paralisa a rotina das comunidades e insiste em apontar o dedo para “os outros”, sem olhar para as mazelas históricas e estruturais que nos trouxeram até aqui.
E o mais grave: o problema que querem combater — a criminalidade organizada, frequentemente alimentada por redes de corrupção e pelo próprio Estado — segue mais vivo do que nunca. Afinal, os grandes financiadores e facilitadores dessa engrenagem permanecem protegidos em condomínios de luxo, assistindo, à distância, às mortes causadas em nome da “ordem pública”.
Enquanto isso, a sociedade brasileira segue incapaz de construir consensos mínimos — como o de que a função do Estado é preservar vidas, e não o contrário. E de que nenhuma morte, nenhuma, deve ser aplaudida.
O êxito de uma política de segurança pública não pode ser medido pelo número de corpos ou por indicadores vazios, mas sim pela capacidade reprimir e prevenir crimes, sem abrir mão da garantia de direitos. O que assistimos no Rio de Janeiro, porém, é o retrato do fracasso completo do Estado — um Estado que não escuta, não planeja e não protege.
E o que fazemos diante disso? Seguimos discutindo “de quem é a culpa”, enquanto as vítimas se acumulam. São milhares de moradores de periferias que lutam para sobreviver à violência do crime organizado. Mas são também policiais, geralmente de baixa patente, que, por dever de ofício, se submetem a operações suicidas.
É necessário compreender que a tarefa de pacificação do país é complexa e enfrenta o seu maior desafio: a criminalidade organizada. Mas, se existe alguma chance de êxito, ela passa pela construção de uma política de Estado capaz de promover coordenação e integração de esforços em todas as esferas federativas — com colaboração, e não disputa —, envolvendo os organismos públicos do sistema de justiça e a sociedade civil. Se o crime está mais organizado que nunca, é essencial que a resposta também seja organizada, planejada, resolutiva sem, entretanto, produzir mais violência.
A recente Operação Carbono Oculto é prova disso. Planejada e conduzida de forma integrada entre diferentes órgãos de investigação e controle, a ação desmantelou um sofisticado esquema de lavagem de dinheiro e desvio de recursos ligados ao crime organizado, sem disparar um tiro. Uma operação que atacou o núcleo financeiro e estrutural da criminalidade, mostrando que inteligência, coordenação institucional e estratégia podem ser muito mais eficazes do que operações de confronto.
Se queremos, de fato, repensar a segurança pública no Brasil, precisamos enfrentar seus três maiores inimigos: a ilegalidade, o populismo e a vaidade federativa.
Precisamos avançar para um sistema nacional de segurança pública baseado em integração, inteligência, financiamento estável, coordenação entre entes federativos e corresponsabilização institucional.
É por isso que a aprovação da PEC da Segurança Pública, travada no Congresso pela oposição, é urgente. Precisamos de um marco constitucional que defina, de forma clara, as responsabilidades da União, dos estados e dos municípios; que garanta financiamento permanente, coordenação nacional e políticas integradas de prevenção, investigação e proteção da vida. Sem isso, seguiremos enxugando gelo, enquanto as comunidades continuam sendo palco de dor, medo e morte, dominadas pela criminalidade organizada.
A constitucionalização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) é um passo essencial para conferir ao governo federal competência de coordenar e estabelecer as diretrizes da Política Nacional de Segurança Pública. Longe de ser uma discussão inédita, desde a promulgação da Constituição de 1988, multiplicam-se as tentativas de estruturar o SUSP em nível constitucional.
Somente quando a segurança pública for tratada sob a lógica de uma política pública de Estado, à semelhança do que ocorre na saúde e na educação, teremos condições de avançar rumo a uma macropolítica capaz de garantir, minimamente, as seguintes diretrizes:
- Estruturação de uma política nacional centrada na integração política, estratégica e de gestão entre União, estados e municípios, bem como entre as forças de segurança;
 - Pactuação de um modelo de cofinanciamento e de repasse dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública;
 - Enfrentamento ao crime organizado, inclusive às milícias, por meio de políticas baseadas em inteligência, técnica, controle de fronteiras e ações voltadas ao bloqueio financeiro dessas organizações;
 - Remodelação da política de encarceramento, a fim de impedir que facções criminosas controlem os presídios;
 - Pactuação interfederativa e investimento em políticas de ressocialização;
 - Alinhamento e reformulação dos cursos de formação das forças de segurança;
 - Implementação de uma política eficaz de redução de homicídios, especialmente daqueles praticados pelo Estado;
 - Fomento a políticas de prevenção às violências contra mulheres, jovens, crianças e minorias;
 - Fortalecimento do papel das cidades na segurança pública, por meio das guardas municipais, políticas de prevenção e urbanismo social;
 - Criação de espaços formais de participação da sociedade civil na formulação e fiscalização das políticas de segurança;
 - Adoção de uma política institucional de combate ao racismo estrutural, de desarmamento da população civil, limitação de acesso a armamento pelos CACs e de controle rigoroso do armamento das forças de segurança.
 
Por fim, resta torcer para que a chamada Operação Contenção — e seus trágicos desdobramentos — sirva como ponto de inflexão. Não há possibilidade de uma política de segurança pública eficaz enquanto as disputas políticas estiverem acima dos reais e genuínos interesses da sociedade brasileira.
*Letícia Delgado é doutora em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e vereadora pelo PT em Juiz de Fora (MG).
—
Este é um artigo de opinião. O posicionamento do autor não representa necessariamente as ideias do PT-MG