*Por João Batista Mares Guia
Introdução:
O PT é, genuinamente, o único partido político brasileiro contemporâneo que floresceu da sociedade, das classes sociais, dos trabalhadores e das classes médias, do sindicalismo urbano-industrial e rural, dos movimentos sociais. Não irrompeu de um nada ou “pelo alto”. Porquanto laico, floresceu, também, entre as comunidades eclesiais de base. Acolheu uma vasta teia de organizações de esquerda. Reivindicavam-se revolucionárias e ajudaram a fundar um partido democrático e reformista, de esquerda. Educador coletivo, o PT a todos educou formidavelmente para a vida em democracia. Louvava a sua vibrante democracia interna. Suas vigorosas disputas domésticas envolviam, sempre, ideias, propostas, discussão programática, sonhos e alguma utopia. Essa poesia em movimento caudaloso resultava em vitalidade, fortaleza moral, coesão política na diversidade, perseverança, construtivismo paciente do partido pela ação política local e molecular, engajamento nas lutas sociais, descoberta e decidida participação na competição política e eleitoral local, regional e nacional, fidelidade aos movimentos sociais e aos trabalhadores, paixão social pela Justiça, uma paixão flamejante educada na coexistência com uma nova paixão, a paixão pela política. O PT educou todas as esquerdas. Afinal compreenderam e internalizaram o ideário da democracia como um valor universal. Antes, julgavam que a democracia era só para uma classe social.
O bom PSDB originário, de Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso, de Franco Montoro e Tasso Jereissati, irromperia do MDB, em 1988, como se saído da costela de Adão. Não sem méritos, conquistou por duas vezes a presidência da República. Deixou um legado democrático. Duas décadas mais tarde, começaria a negar-se a si próprio. O PTB getuliano, da época da democracia de 1945 a 1964, teve dupla origem: uma “pelo alto”, a partir do Ministério do Trabalho, e, outra, verdadeiramente pela base, a partir do chão de fábrica. Emancipara-se do personalismo de Vargas, instituíra-se como um partido nacional e de massas tipicamente de centro-esquerda reformista, o “trabalhismo”, quando a democracia brasileira foi destruída pela ditadura civil-militar de 1964.
Por sua vez, em percurso completamente distinto e à margem da institucionalidade, a inesquecível Ação Popular (AP), de origem cristã humanista, reformista e democrática, de 1962, que tão bem resistira como organização nacional em expansão sob a ditadura militar, presente no movimento estudantil e no movimento sindical e operário até 1968, com afinidades eletivas com o catolicismo reformado, ao se decidir pela entrega à paixão pela revolução, fez-se abdicante do bom reformismo democrático e do “trabalho de bases e de massas” que tanto a haviam caracterizado. Foi assim que, sob a ditadura, no final de década de 1960, perdemos uma oportunidade para formar o que poderia ter sido a versão originária do futuro Partido dos Trabalhadores. A AP provavelmente teria agregado todas as esquerdas, inclusive as esquerdas da luta armada, após os Anos de Chumbo! Intelectuais fundaram e dirigiam a AP. Intelectuais dissiparam a AP.
O PT floresceu na luta de classes reformista e democratizante no chão de fábrica, nos sindicatos, nas periferias urbanas pobres e metropolitanas em formação, onde surgiram as CEBs. Agregou as esquerdas, em geral, ainda um tanto desconfiadas do “reformismo” do PT e do líder metalúrgico, fundador e, então, líder maior do novo partido: Lula. Lula e o novo sindicalismo da classe operária moderna e das novas e velhas classes médias assalariadas, foram os esteios da edificação do PT. O PT nasceu das lutas de classes para fundar uma cultura política ao mesmo tempo democrática, reformista e de irrevogável e inegociável compromisso com a Justiça Social e o bem-estar geral das classes trabalhadoras e populares. O PT das lutas de classes é um construtor de democracia. Nascera também apaixonado pela democracia interna e pela prática da ética na política.
Após disputar e perder três eleições nacionais para a presidência e, ao perder, testemunhar seu fundamental compromisso com a democracia, entrado o século XXI o PT acumularia vitória sobre vitória em nível nacional. Os governos Lula I e II e Dilma Rousseff I e II, assim como o governo Lula III, são evidências históricas e em ato de compromisso e testemunho de fidelidade ao povo brasileiro, à democracia e ao reformismo de tipo socialista, compatível com a economia de mercado, na linhagem do desenvolvimentismo com Justiça Social. O PT no poder acabou com a miséria e a fome no Brasil. A Constituição de 1988 elevou o povo brasileiro à cidadania de direitos. Pela ação coletiva política, o PT transpôs para a vida os direitos inscritos na Constituição e lhes deu vida em plenitude na forma de real distribuição e desconcentração do poder político, do poder social e, em certa medida, do poder econômico. Lula e o PT puseram os pobres no orçamento e nas políticas públicas.
Direitos e combate à pobreza e à desigualdade custam muito dinheiro. Dinheiro que vem dos impostos. Os governos Lula e Dilma Rousseff puseram os pobres, os trabalhadores e os aposentados no orçamento. Todavia, assim fizeram mediante redistribuição intraorçamentária, isto é, sem adicionar dinheiro novo proveniente de tributação progressiva sobre a renda dos ricos e muito ricos. Na ocasião, a correlação de forças sociais e políticas ainda não possibilitava a transição do reformismo atenuado a um reformismo baseado em transferência tributária de parte da riqueza dos ricos e muito ricos para o financiamento da ampliação e universalização de políticas públicas sociais e ambiental mais profundamente inclusivas.
Seja como for, o PT no governo mudou o Brasil. Em intenções e atos, o PT realiza uma revolução democrática e reformista no Brasil capitalista, desigual e nos dias de hoje ainda predominantemente conservador. É, verdadeiramente, o único partido político nacional estruturado e com capacidades para conquistar e manter-se no poder pela via democrática para realizar coerentemente seu programa, seus propósitos, sob a vigência do presidencialismo multipartidário de coalizão. Assim se construiu a cultura política do PT.
Hoje, o PT vive uma crise. No passado, havia sido de crescimento. Hoje, de envelhecimento demográfico, sem recrutamento entre as jovens gerações. No passado, ao clamor por mais e mais participação das bases no poder partidário, associava-se o clamor pela participação dos movimentos sociais e dos trabalhadores em conselhos de cogestão participativa no governo para a formulação e acompanhamento da implementação de políticas públicas. Portanto, havia uma bela crise de “inflação de demandas políticas e sociais participativas”. Hoje, na esfera do partido como tal, parece reinar a escassez! Escassez de participação das bases nas decisões e na vida do partido; escassez de quadros; escassez de ideias; escassez de paixão política associada verdadeiramente à paixão social; escassez de vida política e de animação nos diretórios municipais. De outra parte, prodigalidade na concentração de poderes, excesso de poderes, nas mãos de elites parlamentares.
Nos idos de 2005-2006 o PSDB afiançara que o PT “estava sangrando” e seria derrotado nas eleições presidenciais de 2006. A voz, a fortaleza moral, o espírito do tempo de Lula elevaram-se acima das vozes sombrias que, no próprio interior do PT, mais que duvidar, desacreditavam qualquer esperança de vitória nas eleições de 2006. Lula e suas caravanas removeram montanhas, caminharam sobre as águas. Chegamos à época sombria de 2013 a 2022 e à tentativa de golpe insurrecional de 8 de janeiro de 2023. Lula, e quase somente ele, acreditava na possibilidade de vitória em 2022, em situação tão desfavorável e tão desigual de competição política. O período sombrio de cerco, assédio, ataques destrutivos e tentativas de criminalização do PT e de seus líderes, passando pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e pela condenação e prisão do então ex-presidente, completara dez anos. Vencemos as eleições de 2022. Se é um fato codeterminante que as instituições do Estado Democrático de Direito, os Poderes da República e as instituições de pesos e contrapesos institucionais funcionaram ao ponto de conter, dificultar e estabelecer vetos aos propósitos autocráticos do presidente Jair Messias Bolsonaro; que o então comandante do Exército Gomes Freire e o da Aeronáutica, com o apoio da maioria de oficiais generais, vetaram o golpismo do autocrata, em novembro de 2022; não obstante, decisiva foi a vitória política e eleitoral ou a ressuscitação humana do quase proscrito, banido e vilipendiado Luís Inácio Lula da Silva. Ele, e somente ele, barrou a progressão do golpe insurrecional de 8 de janeiro de 2023. Mobilizou os Poderes, mobilizou a República, mobilizou a opinião pública mundial. Então, a democracia derrotou a autocracia. Imagine-se Bolsonaro reeleito!
O presidente Lula lidera, hoje, no país, uma segunda mudança de distribuição do poder político e social e de distribuição da riqueza social, ao mesmo tempo, como desdobramento e superação do legado do que o cientista político André Singer chamara de “reformismo fraco” dos governos Lula I e II. O presidente lidera, com o fundamental protagonismo do ministro Fernando Haddad, a implementação de um “reformismo forte”, na linhagem do pobre no orçamento para virar classe média, e o rico nos impostos (dividendos, remessa de lucros, IRPF, herança). Ou o reformismo forte acontece agora, ou perderemos a janela histórica aberta pelo governo do presidente Lula, embora a correlação de forças sociais seja ainda mais desfavorável que naqueles idos de 2007 a 2010. Recorde-se que, ao contrário da ausência de resistência da democracia e dos democratas ao golpe civil-militar de 1964, o presidente Lula liderou a resistência da democracia e das instituições do Estado Democrático de Direito à insurreição golpista de Jair Messias Bolsonaro e suas legiões criminosas. Lula é, hoje, o fiador político da legalidade, o fiador político do republicanismo, a única liderança nacional com capacidades para convencer um Congresso Nacional conservador e predominantemente de direita democrática e semileal à democracia a votar a Reforma Tributária II, redistributiva, ainda que mitigada.
Hoje, quase dois anos após a intentona golpista de janeiro de 2023, enquanto a sociedade, em um crescendo, avalia positivamente o governo Lula e o desempenho do próprio presidente, o voto no PT não acompanha o prestígio do presidente e os êxitos do governo. Ao ponto de termos sido derrotados eleitoral e politicamente nessas eleições municipais de 2024, apesar dos acumulados êxitos de nosso governo nacional de coalizão. Há uma crise interna no PT. Estamos em crise. Causa de fenômeno é interna. Fatores externos são intervenientes. Por isso, esses textos que ora apresento como uma contribuição ao debate no PT, buscam compreender a crise e suas causas internas para expor ao debate ideias e propostas de superação. Pretendo divulgá-los. De igual modo, divulgarei, em igualdade de condições, as críticas que provavelmente virão na forma de um desejável contraditório.
Fui fundador do PT. Cometi o gravíssimo erro e falta com todos os meus companheiros ao deixar o partido, em 1985, por descomedimento e soberba. Embora tardiamente, a todos publicamente peço desculpas. A ele, PT, que nunca saiu de meu coração, estou de volta, em casa. De volta à vida em democracia dentro do PT. Entretanto, viajando e conversando por esses interiores, percebo a democracia interna do partido ameaçada, aqui e ali, sem fazer generalizações, por práticas de oligarquização do poder. Não se trata de má-fé. Trata-se de fragilidade humana. Ausência de perspectiva. Pretendo levar o debate sobre essa crise a todas as bases do PT, a cada diretório municipal, se convidado, naturalmente autorizado pela direção estadual. Nesse momento, as ideias e propostas constantes desses textos estão sendo encaminhadas aos dirigentes estaduais e aos deputados federais e estaduais. O partido dispõe de páginas oficiais na internet. Lá, poderão ser acessados por todos os diretórios municipais. As críticas aos textos naturalmente deverão ser tornadas públicas. Portanto, ao debate.
Aos 03 de novembro de 2024,
Fraternalmente,
*Professor de Sociologia da UFMG. Primeiro Deputado Estadual do PT em MG. Secretário Municipal em Contagem por 8 anos. Secretário de Estado de Educação de MG. Consultor do Banco Mundial. Coordenador da campanha pelas “Diretas Já” em MG.
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Democracia “minimalista” e democracia “maximalista”, o progressismo e as esquerdas
Crucial intensificar o debate político e de ideias para fortalecer o partido e revigorá-lo, desde agora, para a dura disputa eleitoral, política e ideológica de 2026[1]. Teremos polarização nacional, desejável, construtiva, necessária. Diferente de extremismo antidemocrático, como se viu, à extrema direita, nas eleições nacionais de 2018 e 2022. Serão eleitos o presidente da República, governadores, deputados federais, dois terços do Senado da República e deputados estaduais. Além de reler Lula, o PT precisará garantir ao presidente reeleito bancadas fortes e de grande qualidade na Câmara dos Deputados e no Senado. A extrema direita e as direitas semileais à democracia vêm com tudo para garantirem maiorias nas duas Casas do Congresso Nacional, em cerco parlamentar ao governo reformista de Lula IV (2027-2030). É a política! Ainda bem!
Desejo que essa reflexão resulte em uma contribuição para que as esquerdas, em geral, e o PT se consolidem como um campo democrático e reformista – o progressismo: a ideia de que uma sociedade melhor é possível pela ação política coletiva. Em intenção, desejo abrir o debate sobre DEMOCRACIA e REFORMISMO também com os campos de ideias e de valores do centro do espectro político-partidário (MDB, PSDB e PSD) e da direita democrática, assim como com os partidos ainda apenas semileais à democracia (Novo, PR, PP, União Brasil). Semileais porque, embora apoiem a democracia, transigem ao ponto de, em passado recente, terem apoiado líder e governo da extrema direita antidemocrática. Contudo, são diferentes do PL, o partido da extrema direita antidemocrática, hoje o partido do bolsonarismo. Pelo menos enquanto o tumultuoso ex-presidente não decida romper com ele. Afinal, o PL, e somente ele, foi cúmplice da tentativa de golpe de 08 de janeiro de 2023.
O reformismo democrático aspira a democratização da democracia, isto é, sobre a pedra fundamental da democracia minimalista ocupa-se de ampliar o horizonte de ideias e de valores como fundamentos para a proposição e implementação de políticas públicas estruturantes e redistributivas da riqueza (pela via de impostos progressivos) e de bem-estar social, em direção a alguma forma de democracia maximalista. Os fundamentos da democracia minimalista são:
i. Indivíduos livres e iguais em direitos decidem quem irá governar (voto livre, secreto, inviolável);
ii. Governos legitimamente eleitos têm de atuar dentro de limites que não foram por eles estabelecidos (respeito canônico à institucionalidade constitucional: regras do jogo);
iii. As disputas tendem a desenvolver-se como um jogo no qual não há quem leve tudo e deixe os outros sem nada (inaceitáveis a tirania da maioria e a tirania de minoria); iv. A periodicidade das eleições e a igualdade razoável de condições da competição eleitoral instauram a possibilidade real da alternância no poder. Portanto, quem hoje perde, pode e deve se preparar para a próxima disputa, preservada a paz e criminalizada a violência. Por isso, a democracia é o único tipo de regime que permite que os conflitos que atravessam a sociedade sejam resolvidos de forma pacífica. Pois uma coisa é a desejável polarização: posições claras de lado a lado político e a disputa aberta, programática, propositiva, intensa. O Outro, diferente de mim é apenas adversário político. Outra coisa, é o extremismo, a disposição e intenção de usar a democracia contra a democracia para destruí-la por dentro a partir da conquista legítima do poder. O Outro é visto como inimigo a ser destruído ou silenciado.
Em outras palavras, todos, às esquerdas, ao centro e às direitas democráticas somos maximalistas democráticos, vez que, além da crença, defesa e prática da democracia minimalista, desejamos e nos empenhamos em alcançar uma forma de distribuição ou de restrição do poder político, de ampliação ou de contenção das liberdades e de direitos, seja como for, em coexistência pacífica com os demais campos políticos democráticos, observadas e preservadas as regras do jogo e o Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, trata-se de mais poder para a sociedade (mais democracia) ou mais poder para o mercado (Estado mínimo ou mais mercado e menos governo), e, em qualquer situação de poder, às esquerdas, ao centro e às direitas democráticas, de implementar políticas públicas ou ações de governo conforme os nossos valores, interesses e convicções culturais, políticas e ideológicas, respeitadas as minorias e seus direitos. Já a extrema direita é maximalista corrosiva, maximalista autocrática, vez que ideologicamente intenciona a corrosão da democracia por dentro da democracia, em direção à autocracia. Para ela, a democracia é instrumental, recurso tático para alcançar o seu fim estratégico, a autocracia. Bolsonarismo, chavismo (Venezuela) e a tirania dinástica da Nicarágua são da mesma natureza: autocracias em progressão.
Progressismo
O campo progressista ou do reformismo democrático (as esquerdas democráticas) ambiciona e empenha-se na ação coletiva política para alcançar e consolidar a distribuição do poder político entre as classes sociais e, simultaneamente, pela via da tributação progressiva, a distribuição razoável da riqueza social, em um contexto de economia de mercado. Aspira alcançar a elevação civil de todos. Portanto, busca a democracia racial e a igualdade social de gênero; o respeito à diversidade cultural, étnica, religiosa e de culto, e de pensamento e opinião; a afluência social dos pobres à condição de classe média, ou seja, uma sociedade livre, mais igualitária, afluente, sem pobreza ou desigualdade inaceitável; o direito das classes médias aos benefícios das políticas públicas reunidas na ideia e prática de “estado de bem-estar social”; uma sociedade mais justa, capaz de assegurar às gerações vindouras pelo menos os mesmos direitos hoje desfrutados pelas gerações adultas, além de garantir aos mais desiguais e aos idosos os benefícios da política pública de bem-estar social; lidera a ação coletiva para garantir a vida em pluralidade, observada a covalência ou coexistência de valores até mesmo antagônicos, assegurado o pleno respeito ao pluralismo (de ideias, opinião, orientações existenciais, de crença) e à liberdade individual, fundamentos da dignidade humana e da vida em liberdade. Portanto, o Outro, diferente de mim, que pensa diferente de mim, não é inimigo. É cidadão de direitos e sujeito intencional de ação, tanto quanto eu ou você. A ideia de hegemonia de uns sobre os outros é uma ideia fora de lugar na democracia. É fonte subcultural de germinação ideológica de uma mentalidade autoritária.
Políticas públicas sociais redistributivas custam muito dinheiro. O dinheiro necessário vem de algum lugar: de impostos. Esse é o núcleo duro da disputa política e ideológica leal, democrática, entre os partidos políticos e as classes sociais. É assim que se constrói a democracia.
[1] Após o segundo turno eleitoral inicei uma série de gravações sobre as eleições municipais de 2024, o PT, as eleições de 2026 e a democracia no Brasil, disponíveis no Face, Instagram e YouTube. Revi as gravações e decidi transcrevê-las em textos, após revisão e acréscimos. Pretendo reunir esses textos em um pequeno fascículo impresso. Tanto quanto possível, o fascículo conterá a exposição de posições divergentes ou o contraditório, sejam de autores ligados ao PT, sejam de autores de outros partidos ou provenientes do meio acadêmico. Desejo abrir debate em busca desimpedida de esclarecimento mútuo. O núcleo da reflexão e do debate é a DEMOCRACIA e a democracia interna no PT.
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O PT, o poder e a democracia: teoria e prática
Ampliar ou democratizar a democracia custa muito dinheiro público, proveniente de impostos. Esse é o coração da disputa política. Envolve intensa disputa ideológica e política na sociedade sobre se e quanto da riqueza produzida será apropriado pelo governo na forma de tributação progressiva para aplicação em políticas públicas, com transparência e prestação de contas pública, monitoramento e controles (instituições de controle), eficiência e eficácia (bom gerenciamento e resolutividade). Seguridade social (Previdência Social + Sistema de Assistência Social), SUS, educação – básica em tempo integral, tecnológica e superior pública e gratuita -, Bolsa-Família e “portas de saída” como microcrédito e incentivos ao empreendedorismo (Programa Acredita) e programas conexos de emprego e renda e de combate à pobreza, saneamento, habitação popular, transporte público, Justiça, segurança pública, crédito e assistência tecnológica para a agricultura familiar, consolidação produtiva da reforma agrária, e sustentabilidade ambiental são, em simultaneidade, como pensamos, objetivos de políticas públicas de Estado, não apenas de governo. Estabelecê-las como políticas de Estado precisará se fixar como um dos legados do PT à democracia brasileira e à cultura política. A Reforma Tributária redistributiva ou baseada no imposto progressivo sobre a renda (taxar mais os mais ricos) é o suporte estruturante para a realização da elevação social de todos os cidadãos. A Constituição de 1988 garante a elevação civil. A ação coletiva política, a civil e a social e econômica.
Primeiro, Lula, Haddad e o Congresso Nacional derrubaram o “Teto de Gastos”, o garrote fiscal herdado dos governos Temer e Bolsonaro (desrespeitado por este último presidente). O “Teto de Gastos” subtraía vultosos recursos do orçamento das políticas públicas de tipo socialista (SUS, educação pública, gratuita e universal, programas de redistribuição de renda, Minha Casa-Minha Vida, Farmácia Popular, e correlatos), além de retirar do governo a capacidade de investimento e de indução ao desenvolvimento. A gestão das finanças públicas e do crédito público fazia-se segundo o cânone conservador e fiscalista de interesse do oligopolizado mercado financeiro. Ainda em dezembro de 2022, portanto, antes da posse, o presidente eleito Lula e o futuro ministro da Fazenda Fernando Haddad conseguiram aprovar no Congresso Nacional o “Novo Marco Fiscal”. Asseguraram os recursos para a revitalização das políticas públicas de tipo socialista, restauraram razoavelmente a capacidade de investimento do Estado, via orçamento, e dos bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Banco do Nordeste), além de concentrarem esforços políticos na proposição e aprovação, ainda em 2023, da primeira parte da Reforma Tributária (simplificação de impostos, segurança jurídica e confiança, pacto federativo, transparência e desburocratização, racionalidade e previsibilidade), e, em 2024, a aprovação da modelagem operacional do IVA: Imposto sobre Valor Agregado.
Os primeiros impactos e os primeiros resultados positivos apareceram já em 2023 e ampliaram-se em 2024: crescimento do PIB estimado na faixa de 3,0% a 3,5% nesse ano, elevação significativa do emprego formal (portanto, redução acelerada da taxa de desemprego), elevação da renda média familiar, redução da pobreza e combate à fome – que retornara sob os governos Temer e Bolsonaro -, controle e redução da inflação e perspectiva de déficit fiscal zero ou próximo de zero até o final de 2024. Ou seja, mais que apenas crescimento, estabilidade macroeconômica combinada com a retomada do desenvolvimento econômico e social, e a reorganização e implementação simultânea de políticas de Estado de bem-estar social.
No segundo semestre de 2024, o presidente Lula e o ministro Haddad concentraram a atenção do governo na programação para que, em 2025, o Congresso Nacional priorize a tramitação e aprove a segunda fase da Reforma Tributária, a fase de redistribuição da riqueza. É aqui que o amplo consenso alcançado entre o Congresso Nacional, o governo e os empresários na aprovação da primeira fase, deverá, na segunda etapa, exibir dissensos e uma dura e difícil disputa política e ideológica. O ultraliberalismo econômico, voz e paixão do grande empresariado, e o conservadorismo ideológico irão formar aliança de resistência e até de repúdio à Reforma Tributária de tipo redistributivo, vez que ela tem característica mais socialdemocrata, com enfoque no financiamento continuado das políticas que compõem o chamado Estado de bem-estar social pela via de uma tributação ampliada incidente sobre a renda dos muito ricos e ricos. A ideia consiste em tributar dividendos, tributar as remessas de lucros das multinacionais para o exterior (tributação já aprovada pela Comunidade Europeia e pelo G-20), elevar a alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Física dos ricos e muito ricos (como já se faz na Europa desde o pós-Segunda Guerra), elevar a alíquota do imposto sobre heranças (nos Estados Unidos capitalista esse imposto é de 50%) e reduzir as isenções fiscais.[1]
Ao mesmo tempo, o governo e a sociedade precisarão compreender a situação objetiva e oferecer soluções razoáveis para dois enormes e recorrentes desafios ou gargalos do orçamento público federal anual: a questão previdenciária (redução absoluta do tamanho da população e envelhecimento demográfico = crescimento acelerado do número de aposentados versus redução absoluta da população economicamente ativa, portanto, do número de contribuintes. Como fechar a conta?) e a questão da dívida pública associada à taxa de juros, ainda alta. Taxa de juros alta implica em dívida pública em crescimento em proporção ao PIB (Produto Interno Bruto). Sangra o orçamento. A resposta razoável é mais desenvolvimento econômico com sustentabilidade, mais exportação, consumo interno e mais poupança interna. Depende de maciços investimentos públicos e privados e da atratividade da economia para o investidor privado, doméstico e estrangeiro.[2] Taxa de juros alta empurra o dinheiro privado para o mercado financeiro (aplicações financeiras, financeirização da economia). Taxa de juros baixa e mais confiança atraem o dinheiro privado para o investimento produtivo. Crucial, também, é a intransigência e a criminalização da corrupção. Os órgãos de controle estão aptos para combater a corrupção. Como se nota, o governo Lula III está praticando o reformismo democrático de modo coerente e consequente. Supera os feitos dos próprios governos Lula I e Lula II. Esses dois primeiros governos muito fizeram na direção do combate e redução da miséria e da pobreza. Elevaram o padrão de vida dos pobres. Formaram uma classe C de consumo com cerca de 80 milhões de brasileiros pobres que adquiriram padrão de consumo e expectativas de status de uma classe média baixa ascendente, segundo uma métrica de consumo. Entretanto, o chamado “lulismo” (referente aos dois primeiros governos Lula) teria resultado em progresso social significativo, porém nos marcos de um “reformismo fraco”, em palavras do cientista político André Singer, do PT. Com efeito, os pobres melhoraram de vida. Os ricos também. Os ricos, em “embarcações” ricas, e os pobres, em “canoas”, todos subiram com a maré alta do crescimento como
desenvolvimento. Ou seja, todos melhoraram, contudo, o padrão estabelecido de desigualdade permaneceu intocado. Isto é, não houve transferência real de riqueza dos ricos e muito ricos para os mais pobres e pobres. Houve transferência governamental intraorçamentária, sem alteração da política tributária, sem tributação progressiva sobre a renda. O governo Lula III está decidido a incrementar uma política tributária redistributiva, ou seja, de transferência de parte da riqueza dos ricos e muito ricos para os mais pobres e pobres através da chamada tributação progressiva. Outro propósito, chamado pelos conservadores e pelo mercado financeiro de heterodoxo, é também o de financiar o “desenvolvimentismo” e, ao mesmo tempo, garantir a estabilidade macroeconômica.[4]
[2] Segundo a fonte Rankia.com, os impostos incidentes sobre dividendos têm as seguintes alíquotas, em diferentes países, entre capitalistas e híbridos de capitalismo de mercado e de capitalismo de Estado, como a China: Finlândia e Suíça: 35%; Suécia e estados Unidos da América: 30%; Alemanha e Itália: 26%; Franças: 25%; Espanha: 19%; Japão e Países Baixos: 15%; China: 10%; Brasil: 0%.
[3] O Brasil estabeleceu-se em 2024 como o segundo maior destino do investimento privado mundial, depois dos Estados Unidos da América.
[4] Em entrevista matinal à Globo News, no dia 01/11/2024, na contramão das habituais vocalizações do mercado financeiro sobre o estado da economia, o CEO do Bradesco declarou que o país vai bem, a economia vai bem, há crescimento, o mais baixo nível de desemprego desde 2013, e que isso se deve à política econômica do governo do presidente Lula. Com essa trombetada do banqueiro heterodoxo, espera-se que fiquem pelo menos trincadas as “Muralhas de Jericó” ideológicas da Faria Lima.
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O governo Lula III, o PT-MG e o voto em Belo Horizonte e nos interiores
O governo Lula III vai bem. Entretanto, o PT vai mal ideológica, política e eleitoralmente. Tem se saído mal em eleições desde as municipais de 2016. Suas práticas políticas internas já não são virtuosas como nos “anos dourados” de 1980 a 2014. Viu reduzirem-se as suas bancadas de deputados federais e de senadores nas eleições de 2014, 2018 e 2022, e o número de prefeituras no país, desde 2016. Durante a década sombria de 2013 a 2022 perdeu identidade e capacidade de liderança política no Congresso Nacional e de orientação geral na sociedade. Negligenciou ao não assumir os seus erros. Contemplou, impávido, as elites do partido promoverem uma insólita concentração de poder político interno e de controle de meios de poder nas mãos de seus parlamentares. Assistiu progredir, sem contenção alguma, a oligarquização penetrar a vida partidária. Colheu o quase “colapso do futuro” das bases partidárias nos municípios, desmobilizadas, desmotivadas, desprestigiadas, desconsideradas, sem orientação. Assistiu placidamente acontecerem o envelhecimento demográfico do partido, simultâneo à ausência de recrutamento entre as juventudes.
Os processos estruturais, ineludíveis e inexoráveis de volatilização do mundo do trabalho determinados por incessante inovação tecnológica e automação – disso resultando a obsolescência crescente de profissões antes sólidas -, novas formas de contratação do trabalho mediante estratégias de pejotização, a hoje dominante terceirização catapultada pela terceirização da terceirização, a uberização, a escalada de contratações temporárias e pejotizadas de serviços de toda ordem, a utilização doravante em escala da tecnologia de Inteligência Artificial, as privatizações associadas à escala de terceirizações, a redução crescente da convivência em e de espaços comuns de trabalho substituídos pelo trabalho remoto e por videoconferências, tudo isso, em simultaneidade, afeta severa e intensamente a estrutura de classes sociais, as relações sociais e interindividuais e as expectativas ao ponto de fixarem no psiquismo das pessoas a percepção de algo como um “colapso do futuro”. Tudo que antes era sólido, desmancha-se no ar!
É o que está acontecendo com o sindicalismo urbano-industrial e o rural, gravemente alcançados por aqueles processos de “modernização” do capitalismo em sua era de financeirização de todas as relações econômicas. Não bastasse, uma avassaladora e desregrada paixão se impôs e atravessa horizontalmente todas as classes sociais e singularmente as juventudes: a servidão voluntária e psíquica às redes sociais e, nelas, a servidão voluntária aos ecossistemas de câmaras ou bolhas de eco e seus típicos vieses de confirmação, vez que dispensam a reflexão, a argumentação, o diálogo e o compromisso com a busca de evidências. A instantaneidade cada vez mais ocupa o lugar do distanciamento crítico, assim como o individualismo e o narcisismo ocupam o lugar dos espaços públicos de convivência e de exercício da cidadania. São novas e, em certa medida, assombrosas realidades. Tudo isso condiciona, intervém e dificulta a ação coletiva. Impede? A solidariedade parece amplamente divorciada dos interesses. A paixão social teria cedido seu ancestral lugar ao sol ao narcisismo ou à paixão por si mesmo e seus interesses. Mas tudo isso determina os cursos de nossas escolhas e ações? Dispomos de opções e de escolhas?
Se as esquerdas transitaram virtuosamente da entrega à paixão pela revolução à paixão pela política e pela democracia, associando à paixão política adquirida a poderosa paixão social herdada da paixão pela revolução, nos dias de hoje, observando as condutas de alguns líderes, entre as elites parlamentares do PT, tem-se a impressão e a percepção de que, senão em maioria, elas se entregaram exuberantemente à paixão pela política a serviço do voto, desdenhando a paixão política pela “participação” e o originário compromisso do partido com o protagonismo, a voz e vez de suas bases municipais, o chamado “trabalho de base”. A outorga de emendas está matando o trabalho de base, substituído por práticas de cooptação em uma espécie de “mercado político” de incentivo à formação de heterodoxas “sublegendas de voto”, disso resultando a asfixia política dos diretórios locais.
No partido, não mais seguimos os exemplos de Lula. Que dissonância é essa entre o êxito do governo Lula III e o insucesso eleitoral do PT nessas eleições municipais? Que dissonância é essa entre o líder nacional que mantém vivas e testemunha no dia a dia a paixão social e a paixão política, assim como a fidelidade às suas origens de classe social e à sua vivência no mundo do trabalho operário-industrial? Como se comprovou nessas eleições municipais, os sucessivos e admiráveis êxitos do governo Lula III não se transferiram ao PT nas formas de uma relação simpática do eleitor com o partido, traduzida em voto. Até as eleições gerais de 2010 o voto de grande parcela dos eleitores para deputado federal e para senador acompanhava o voto para presidente em candidato(a) do PT. Hoje, é evidente e acentuada a dissonância político-eleitoral entre o voto no presidente Lula ou a aprovação do governo do presidente Lula, e, declinante, o voto no PT.
Nessas eleições municipais o PT elegeu somente um prefeito de capital e por uma diferença de menos de 1% sobre um candidato bolsonarista ultrarreacionário, em Fortaleza. Significa que a cidadela nordestina do PT começa a apresentar rachaduras. Em primeiro turno, não elegeu nenhum prefeito de capital. No passado, elegera simultaneamente nove prefeitos de capitais. Em São Paulo, perdeu a disputa em todas as cidades mais importantes, inclusive na bem administrada Araraquara pelo prefeito em segundo mandato Edinho. Em Minas Gerais, o PT manteve as prefeituras de Contagem e Juiz de Fora, mas perdeu Teófilo Otoni e não elegeu nenhum prefeito em quaisquer das 50 maiores cidades dos interiores e da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), exceto em Almenara (Baixo Jequitinhonha). Antes, elegia os prefeitos de todas as grandes cidades do Vale do Aço (Ipatinga, Coronel Fabriciano e Timóteo) e, também, da vizinha Governador Valadares, com mais de 350 mil habitantes. No Norte de Minas e no Jequitinhonha, onde Lula sempre foi muito bem votado, o PT não elegeu o prefeito de nenhuma cidade de 30 mil habitantes e mais, exceto em Almenara. O mesmo ocorreu no Triângulo Mineiro, no Noroeste, no Oeste e na vasta região do Sul de Minas onde o PT elegia os prefeitos de grandes cidades como Varginha, Pouso Alegre, Poços de Caldas e outras. Afora Contagem, não elegeu nenhum prefeito na enorme RMBH, onde elegia os prefeitos da Capital, Betim e Nova Lima, além de Contagem. Na Capital, o progressismo elegeu Pimenta da Veiga, do PSDB (1988), seguindo-se as eleições de Patrus Ananias, do PT (1993-1996), Célio de Castro, do PT (1997-2000 e 2001-2004), e, também do PT, Fernando Pimentel (2005-2008), seguindo-se, em coalizão, Márcio Lacerda, do PSB (2009-2012), e, uma vez mais, dessa feita em disputa com o PT, Márcio Lacerda (2013-2016), e, sucedendo-o, o outsider Kalil (2017-2020 e 2021-2022), até a posse do vice e atual prefeito Fuad Noman, do PSD, de centro, agora eleito em segundo turno em dura disputa contra um bolsonarista extremista. Fato que fica: a extrema direita, em segundo turno, e as esquerdas, em primeiro turno, foram derrotadas na Capital. As esquerdas somaram-se à candidatura de Fuad Noman em segundo turno. Juntos, deverão realizar governo de coalizão.
Com as esquerdas divididas e com candidaturas próprias, o candidato do PT para prefeito, em aliança com o PSOL, PCdoB, Rede e PV, obteve menos de 5% dos votos. Ficamos em sexto lugar, atrás da candidata do PDT, apesar do grande empenho e das qualidades do nosso candidato. Centro e extrema direita disputaram o segundo turno.
É fato que, em 2018, a Capital obsequiou mais votos em Bolsonaro que em Fernando Haddad, e que em Lula, em 2022. Patentemente, naqueles anos o voto da maioria dos eleitores da Capital de Minas migrou às direitas nas eleições gerais. Significa que a população de Belo Horizonte é majoritariamente conservadora e até mesmo anti-PT? Se assim fosse, como explicar o voto no PSDB progressista em 1988 e, daí em diante, até as municipais de 2016, o voto no PT (três vezes) e no candidato do PSB (duas vezes), seguindo-se, como relatado, o voto em candidatos de uma coalizão do centro com o apoio das esquerdas (Kalil)?
O insucesso do governo Pimentel, do PT, à frente do Executivo de Minas Gerais, eleito em 2014 com maioria de votos na Capital e na RMBH, por si não explica o insucesso eleitoral do partido em Belo Horizonte, em 2024, vez que nacionalmente o PT saiu-se muito mal nessas disputas municipais, tanto nas capitais quanto nos interiores, inclusive em seu baluarte e vasto território de bem-sucedidos governos petistas, o Nordeste. Nessa região, perdemos em São Luís, Teresina, Natal, Salvador, Maceió (em coalizão) e Aracaju. O PSB reelegeu o prefeito de Recife, talvez a mais promissora liderança política com alta perspectiva de protagonismo nacional propulsado nas asas de sua juventude e de seus êxitos como líder político e governante. Portanto, nessas eleições e desde 2016 a escassez de votos no PT em eleições municipais é um fenômeno nacional. Entretanto, reportando-se ao caso de Minas Gerais, nas eleições gerais de 2022, com Lula de volta, o PT-MG elegeu dez deputados federais e dez deputados estaduais, um excelente resultado. Não obstante, por que o fracasso mineiro nas eleições municipais apenas dois anos após, face a face aos êxitos do governo Lula III? Provavelmente a resposta se encontre no que precedentemente chamei de oligarquização, envolvendo a formação de sublegendas eleitorais apesar da existência de diretórios municipais do PT, em práticas de desprestígio e de abandono político das bases municipais.
Os eleitores teriam se cansado da polarização, em busca de candidatos de centro ou da direita não-extremista? Os eleitores concentraram sua atenção nas questões locais, municipais, resistindo e recusando apoio às candidaturas que eventualmente tenham insistido em “nacionalizar” a disputa e reeditar a polarização de 2018 e 2022? Os eleitores teriam decidido premiar os prefeitos em primeiro mandato que realizaram boas administrações? Ainda que todos esses fatores contenham alguma razão explicativa parcial concernente aos resultados, o fato que fica é o de que o PT apresentou escassíssimos candidatos próprios ao cargo de prefeito nos municípios. Por que? É isso que precisa ser completamente esclarecido.
Visto de outro ângulo, se ainda há um vasto e disseminado antipetismo que aparentemente atravessa todas as classes sociais, inclusive parcela dos pobres, entre eles os evangélicos pobres, como iremos superar o antipetismo sem compreender as causas geradoras de tão intenso sentimento de negação? Não obstante, em 2022 Lula fez acontecer o “milagre” de vencer uma eleição havida como perdida, disputada em condições absolutamente desfavoráveis e desiguais. Com efeito, Lula e a pandemia derrotaram Bolsonaro.
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Resultados das eleições municipais de 2024: rejeição ao PT?
No Brasil, nas eleições de 2024 o PSD, de centro, campeão em conquista de mandatos, elegeu 882 prefeitos. Responde pelo maior número de prefeitos no país (225 a mais que em 2020). Em segundo lugar, o MDB, também de centro, elegeu 856 prefeitos (63 a mais que em 2020). O PP e o União Brasil, partidos de direita semileal à democracia, porém não extremistas, elegeram, respectivamente, 748 e 585 prefeitos. Em quinto lugar, o PL, de extrema direita, elegeu 512, um desempenho distante da promessa do ex-presidente Bolsonaro de eleger pelo menos 1500 prefeitos. (Portanto, o PL é, comparativamente, o partido que nacionalmente sofreu a maior derrota política, embora tenha conquistado 168 prefeituras a mais que em 2020. Exceto uma, perdeu em segundo turno todas as disputas de que participou nas capitais e em grandes cidades dos interiores.) Na sequência, em 6ª e 7ª posições no ranking encontram-se o vitorioso PSB, de centro-esquerda, que passou de 253 para 312 prefeituras, e o derrotado PSDB, de centro, reduzido a 273 prefeitos (perdeu 250 prefeituras, por comparação com 2020). Em 8ª posição no ranking vem o PT, com apenas 248 prefeituras (66 a mais que em 2020, contudo, concentradas no Nordeste e em cidades pequenas), por contraste com as 635 conquistadas nas eleições municipais de 2012, seguindo-se na 9ª posição o colapsado PDT, com apenas 149 prefeitos (166 a menos que em 2020), em crise, dividido, em via de inviabilidade e em busca de formar uma federação com o PSDB. O PV (14 prefeitos), a Rede (4 prefeitos) e o PCdoB (19 prefeitos) saíram das eleições de 2024 em situação crítica. As esquerdas juntas (PT, PDT, PSB, PV, Rede, Cidadania e Psol) elegeram apenas 467 prefeitos. O centro (PSD, MDB e PSDB) elegeu 2011 prefeitos; a extrema direita, o PL, 512; as direitas semileais à democracia (PR, PP, União Brasil e Novo) elegeram 1787 prefeitos, portanto 1320 a mais que o total de prefeitos eleitos pelas esquerdas. O centro elegeu 1544 prefeitos a mais que as esquerdas.
Considerada a série histórica das seis últimas eleições municipais no país, no período de 2004 a 2024, portanto, do primeiro ao terceiro governo do presidente Lula e quinto governo do PT, entremeados pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (2016), a presidência de Michel Temer (2016-2018) e o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), o desempenho do Partido dos Trabalhadores nessas competições eleitorais municipais, e, especificamente, nas capitais, em número de prefeituras conquistadas no país, é o seguinte:
2004 (governo Lula I): prefeituras em geral: 409; capitais: 9;
2008 (governo Lula II): prefeituras em geral: 554; capitais: 6;
2012 (governo Dilma I): prefeituras em geral: 625; capitais: 4;
2016 (governo Temer): prefeituras em geral: 252; capitais: 1;
2020 (governo Bolsonaro): prefeituras em geral: 184; capitais: 0;
2024: (governo Lula III): prefeituras em geral: 252; capitais: 1.
Observa-se que em 2024 o PT permaneceu no mesmo patamar de desempenho de 2016, quando elegeu apenas 252 prefeitos e conquistou o governo de apenas uma capital, em contraste marcante com o desempenho registrado quatro anos antes, em 2012. Os anos de 2004 a 2012 parecem descrever um tempo de “anos dourados” do triunfal progressismo que floresceu a partir da promulgação da Constituição de 1988. Com efeito, de 1989 a 2014 as competições eleitorais nacionais, estaduais e nas capitais, em geral e invariavelmente demarcaram uma saudável polarização político-partidária, ideológica e programática entre o PSDB e o PT. O presidencialismo de coalizão multipartidário funcionava. Havia em cada eleição um “clima” de “Nós Contra Eles”, completamente diverso do que viria depois, um anti-clima de beligerância do “Nós Sem Eles” introduzido pela extrema direita ascendente no país, indicativo de uma intencionalidade e de práticas de uso utilitário das “regras do jogo” ou da institucionalidade do Estado Democrático de Direito para se obter a corrosão da democracia.
O julgamento do Mensalão, em 2012, as Jornadas de Junho e seus derivativos ideológicos, políticos, pulsionais, passionais e no campo dos valores, a Operação Lava Jato e o seu gêmeo univitelino, o lavajatismo, o maciço e persistente discurso denunciatório contra o PT movido pela grande imprensa (TV e jornais), a pioneira organização de um ecossistema e suas câmaras de eco de denúncias contra o PT e seus líderes através das redes sociais sob o controle ainda monopolista da nascente extrema direita, o fato do PT não ter assumido que alguns dentre seus dirigentes denunciados por prática de corrupção haviam – de fato – praticado corrupção, o cerco acusatório completamente sem prova e intencionalmente condenatório contra o ex-presidente Lula, a aberrante condução coercitiva do então ex-presidente até o aeroporto de Congonhas – uma odiosa e intencional decisão política do então juiz Sérgio Moro -, e a inconstitucional decisão do Supremo ao impedir a investidura do então ex-presidente em cargo de ministro de Estado do governo Dilma II, seguindo-se, em escalada, a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff – decidida tanto a partir das ruas pelas pressões do florescente movimento que viria a desembocar no chamado “bolsonarismo” -, a formação da extravagante aliança do centro com as direitas sob a direção de uma difusa extrema direita civil, militar e religiosa, em ascensão, e, por fim, o crescimento eleitoral e político das direitas no Congresso Nacional, para culminar com o domínio da Câmara dos Deputados pelo baixo clero e pelo titanismo delitivo de um deputado federal disposto a promover a corrosão das instituições republicanas (Eduardo Cunha), tudo isso assediado e potencializado pela crise de recessão (2015-2016) e seus efeitos multiplicativos de intensificação da crise política, deveria resultar, como era desejo dos algozes, em queda, crise, e, adiante, em presumido “colapso do futuro” do PT como partido e da liderança do presidente Lula.[5] De volta ao ponto de interesse, o fato que fica é que de nove prefeitos de capitais em 2004, o PT retrocedeu a um, em 2016, descendo a nenhum em 2020, obtendo apenas um em 2024, enquanto via as prefeituras sob o seu governo retrocederem no país, de 625, em 2012, a apenas 252, em 2016, o mesmo resultado de 2024. Colhemos uma derrota eleitoral e política. Com um agravante: o governo do presidente Lula III vai bem na percepção da população, a economia vai bem, as políticas públicas estruturadoras da macropolítica de Estado de bem-estar social vão bem. Há inovações respectivas à expansão do bem-estar social: o Programa Pé-de-Meia e o Programa Acredita, de microcrédito para que os muito pobres e pobres disponham de uma porta de saída do Programa Bolsa Família, para que os chamados microempreendedores individuais disponham de crédito, indispensável para formarem capital de giro como oportunidade para empreenderem.
Isso reconhecido, a pergunta é: Por que os êxitos do governo Lula III não se traduziram em voto dos eleitores nos candidatos do PT nas eleições municipais de 2024? Ou olhamos para dentro de casa em busca corajosa das causas endógenas, produzidas no meio de nós e por nós, como condição para que façamos a diferença e superemos a nossa crise, ou a crise interna irá escalar. Geramos uma crise no partido por partenogênese (por nós, no meio de nós). Não reconhecer isso seria cometimento de autoengano toldado e assediado por síndrome de vitimização. É a crise. É grave. O que precisa morrer, resiste à morte; o que precisa florescer, como a videira entre pedras, irá florescer em campo pedregoso, das ruínas do que precisa ficar para trás.
Manifestações apressadas tornadas públicas, tão pródigas em pulsão midiática quanto avaras em comedimento, esclarecimento e fecundidade analítica e política, saíram à frente investindo contra moinhos de vento. Em nome de presumida modernização do PT, põem abaixo seu pertencimento originário ao campo das esquerdas em exaltação às virtudes de um “centrismo” político e de ideias supostamente acima dos lados, sem compreenderem com nitidez do que estão falando. Pois “o buraco é mais embaixo”! É a cultura política (ou subcultura?) praticada amplamente nos dias de hoje e a algum tempo pelo PT que está “entornando o caldo”. Postular que o PT “precisa” ir até onde os jovens estão, conversar, ouvir, interagir com as juventudes das periferias urbanas, e que o PT precisa abrir-se sem preconceito ao empreendedorismo, descobrir suas virtudes e adotá-lo programaticamente como um novo ingrediente de política pública de inclusão e de bem-estar social, é por demais óbvio para se fazer algo relevante e fecundo! Pois “o buraco é mais embaixo”. Apontar o dedo para ministros e para desempenho setorial insuficiente do governo Lula III, ainda que nisso possa residir alguma razão, não irá mudar nada, a não ser substituir um por outro na linhagem de “mais do mesmo”, porque “o buraco é mais embaixo”. Proclamar que o PT precisa “voltar às bases”, revitalizar-se pela base, formar novas lideranças e assim por diante, de tão óbvio, faz-se pouco relevante, até pelo grau de generalidade. Proclamar intenções sem de fato promover mudança de cultura política alguma, é não perceber que “o buraco é mais embaixo”.
O buraco está no poder, no modo de acumular poder, no modo de exercer poder, no modo de usar os recursos de poder, no modo de repartir os recursos de poder, no modo como, há tempos, o PT deixou-se transformar em partido governado e oligopolizado por elites parlamentares e dirigentes praticamente monopolistas e oligarquizantes, nos estados. Em Minas Gerais, embora sem intencionalidade e premeditação, formou-se, de fato, uma espécie de confederação de oligarquias parlamentares que tudo podem. Vamos exemplificar com fatos. A oligopolização se estabelece e se institui mediante alguns percursos de concentração de poder.
Primeiro, se institui e se consolida no modo como as elites parlamentares distribuem entre si o poder no interior do partido. Cristalizam uma espécie de domínio “pelo alto”.
Segundo, a destruição suicida das “bases” municipais do partido. Incentiva-se, através dos chamados “mandatos”, a cooptação de lideranças locais agregadas ao mandato. Quebra-se, assim, a coesão local e fragiliza-se o diretório municipal, vez que, de partidárias, expoentes antes ligados às bases partidárias passam a servir ao “mandato” do deputado tal ou qual. Dessa forma, institui-se um “mercado” de agregação de quadros aos mandatos. Começa, aí, a ruptura da coesão que deveria reinar no diretório municipal do partido, na base. Pior: se, e quando, ocorre divergência entre o mandato e a base municipal, e da divergência irrompe uma situação conflitiva, o mandato, “pelo alto”, sai em captura de apoios eleitoralmente mais robustos e promissores, fora do partido. Assim, irrompem as sublegendas eleitorais controladas pelo “mandato”. Forma-se no Município, face a face à existência de um diretório municipal, uma coalizão eleitoral “pelo alto” com quem estiver no poder ou estiver à frente da oposição na esfera do poder local, seja pertencente a um partido de direita, seja a um partido de centro. Lealdades, campos políticos e coesão interna esfarinham-se. Não residiria, aí, alguma explicação razoável para o enorme déficit de candidaturas do PT aos governos municipais, assim como a escassez de candidaturas a vereador?
Em alguma medida impactante na cultura política do partido, a dinâmica de determinadas ações políticas de lideranças estaduais do PT nos interiores se estabelece continuamente “pelo alto” e o centro de decisão sempre está agregado ao mandato, apesar do diretório municipal. O eleitoralismo passa a triunfar. O elitismo e a oligarquização o acompanham. O partido perde vitalidade, referência, centralidade. Irrompe nas bases uma sensação de não-pertencimento, de baixas expectativas. O cimento que mantém a fidelização ao partido deixa de ser a vida partidária em sua plenitude para se concentrar psíquica e afetivamente na fidelidade e na admiração genuínas dedicadas ao líder Lula. O presidente é o cimento. Entretanto, um círculo de ferro começa a se fechar sobre o PT enquanto o partido envelhece demograficamente. Perde o dom da eterna juventude. Desaparecem as boas práticas locais. A “raposa com atraso” (abundância de esperteza e de imediatismo, e avareza de sabedoria) se impõe à vida partidária.
Terceiro, as emendas milionárias propulsoras de concentração máxima de poderes. É claro, isso adquiriu a velocidade do relâmpago e se estabeleceu de modo dominante, senão generalizado, a partir do momento em que o centrão e o presidente Jair Bolsonaro consorciaram-se para instituírem o fascínio parlamentar pelas emendas milionárias. Isso estabelecido, o que, concretamente fez o PT? Somou-se à infâmia por agregação, por descomedimento. Ao assim proceder, sem resistência real, “normalizou” a aberração em evidência de que, no meio de nós, a paixão social cada vez mais cederia lugar à paixão política, ao tempo em que a bela paixão política se reduzia, cada vez mais, à paixão pelo interesse próprio, ainda que em nome das melhores razões e propósitos. A exacerbação dessa paixão, vez que irrigada pelas emendas milionárias, está estabelecendo uma nova territorialidade no modo do PT fazer política “pelo alto”. Emendas fazem de alguns parlamentares um donatário territorial, quase um soberano. Em Minas, enormes regiões, entre densamente povoadas e de povoação dispersa, apresentam escassas candidaturas parlamentares, reduzindo as chances de formação de novas lideranças e nossa capacidade de competição política e eleitoral. O modo como o PT usa as emendas é o mesmo modo das direitas e do centro. Varia a destinação. A subcultura é a mesma: venha a mim o meu reino! Não há má fé. Há escassez de cultura política democrática.
A pergunta é: Por que o PT não se decidiu por uma regra de gestão da destinação de emendas aplicando-se, por exemplo, no que couber, a ideia de um “orçamento participativo” interno, de modo a que pelo menos 50% do valor anual das emendas parlamentares fiquem sob a decisão, o controle e o direcionamento do partido, incentivando-se a descentralização e a pulverização, até alcançar a “participação” de todas as nossas bases municipais? Ninguém age assim de má fé. Entretanto, uma subcultura compete até se impor e neutralizar a cultura política originária do partido.
Em Minas Gerais temos dez deputados federais. A cada um, é a lei, o Tesouro destina, por ano, R$ 55 milhões. Portanto, somando-se tudo, são R$ 550 milhões ao ano ou R$ 2,2 bilhões no quadriênio. É muito dinheiro e muito poder. Imagine-se se 50% desse valor anual, isto é, R$ 275 milhões, tivessem a sua destinação decidida diretamente pelas bases, naturalmente com o apoio gerencial e a tutoria técnica de uma equipe formada pelo diretório estadual. Imagine-se que o PT disponha, em Minas, de diretórios em 100% dos municípios. Nesse caso, em tese, aritmeticamente, salvo alguma regra de ponderação, cada diretório municipal disporia, ao ano, de R$ 323.529,41 para alocação em diferentes projetos comunitários, culturais (teatro, dança, música, artesanato, áudio visual), de bem-estar, de apoio a empreendedorismo local, à agricultura familiar e em tecnologias conexas, e assim por diante. Imagine-se a aplicação de alguma regra de ponderação, considerado o tamanho desigual das populações, de tal modo que qualquer diretório disporia de pelo menos RR$ 100.00,00 ou mesmo de somente R$ 50.000,00 ao ano para implementar algo como “políticas públicas” locais baseadas em autogestão, com rigorosa prestação de contas! Isso iria incentivar notavelmente a mobilização e o protagonismo das bases, promover a formação e surgimento de novas lideranças, facilitar extraordinariamente a inserção da base municipal do partido na vida social, econômica e cultural local, na cidade e no campo. A vida pulsaria em plenitude. Por que o PT não age assim?
Sem respostas para a superação imediata da crise, não adianta o discurso eloquente e apontar o dedo para “causas” ou felicitar e nutrir entusiasmo pelo centrismo político e eleitoral. O PT é e precisa prosseguir sendo um partido de esquerda, e praticar, como Lula faz, o reformismo democrático. Isso é essencial, sua identidade. Outra, é a prática da política em situação concreta de competição política e eleitoral, que demanda a formação de alianças e a proposição e adoção de um programa de governo de frente ampla. Entretanto, aliança não é, nem pode ser, capitulação, abdicação, deslocamento de um campo de cultura política e de práticas, a outro, por agregação ou assimilação. No Reino Unido, Tony Blair quase “matou” o venerando Partido Trabalhista. Foi preciso errar no deserto durante catorze anos até que a geração pós-moderna da “Terceira Via” fosse substituída pela atual e vitoriosa geração de trabalhistas, que o fez retornar ao poder. A “Terceira Via” deve estar no meio de nós como curso de ação política, entretanto, sempre conduzida pela mão firme das ideias, ideologia e programa do partido. (Sou um socialdemocrata. Nem uso a expressão um tanto vaga e conceitualmente imprecisa de socialista democrático. Socialdemocracia é e será de esquerda, de esquerda democrática, portanto, de esquerda.)
[5] Instigada diretamente pelo comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, a prisão de Lula foi decidida com as vênias do pleno do Supremo em uma votação casuística de placar 5 x 5, típico de uma situação “na dúvida, pró-réu”, no entanto decidida contra Lula por um tão obsequioso e voluntário quanto desproporcional, descomedido e calamitoso voto de Minerva. Dava-se como certo que o PT ingressara, para não mais sair, em uma situação crepuscular.
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O eleitor descolou o voto e o apoio a Lula do voto no PT? Qual é o problema?
Pouco mais de um terço dos cidadãos brasileiros avalia o governo Lula III como “ótimo e bom”; um terço o considera “regular”, uma forma mais discreta de avaliação positiva; menos de um terço o avalia como “ruim ou péssimo”. A resultante evidencia que a radical polarização político-ideológica ou a presumida “calcificação” do voto de metade dos brasileiros na extrema direita, que teria sido insinuada nas eleições de 2018 e 2022, finalmente teria sido em grande medida superada, rumo à moderação. Seja como for, há um fato novo a registrar e analisar. Apesar das boas avaliações do governo Lula III, a pergunta é: Por que o PT está perdendo apoios e eleitores nas capitais e nas grandes cidades dos interiores do Brasil e das regiões metropolitanas, conforme evidenciam os resultados das eleições parlamentares desde 2014, e, agora, os resultados das eleições municipais de 2024? O eleitor descolou o voto e o apoio a Lula do voto no PT? Qual é o problema?
A minha hipótese explicativa sobre a escassez atual de votos nos candidatos do PT é a de que, como antecipado no “Texto 4”, as causas encontram-se “dentro de casa”, “no meio de nós”, nas escolhas e práticas equivocadas do PT a partir de 2012 (julgamento do Mensalão), de seus parlamentares e de parcela de seus governantes municipais e estaduais, em geral muito mal sucedidos onde o PT deveria ser exemplar: a qualidade da educação básica, somando-se o descaso, até a compreensão de que a segurança pública é um direito humano e tão prioritária como saúde e educação. Essa desafiadora e intrigante questão será abordada por tópicos, assim: (1) O PT, os governos do PT e as classes médias urbanas; (2) Os parlamentares do PT e as emendas milionárias: onde estão as boas e exemplares práticas de diferenciação em relação às direitas? Oportunamente, outros tópicos serão examinados.
O PT, os governos do PT e as classes médias urbanas
Na relação com as classes médias brasileiras, em geral, seja a tradicional, vinculada aos serviços públicos, seja a classe média uberizada (terceirização e pejotização das relações de trabalho), seja a classe média empreendedora e suas pequenas empresas, como penso, o PT replicou o mesmo erro da igreja católica no modo como adotou, na década de 1970, a Teologia da Libertação: ao adotar a linha pastoral de opção preferencial pelos pobres, na prática a opção pelos pobres se estabeleceu como uma escolha excludente da atenção pastoral às classes médias. Natural e desejável que o PT fizesse a sua opção preferencial pelos trabalhadores, em geral, e pelos mais desiguais e mais pobres, com destaque, em nome do ideário de Justiça Social, de combate à pobreza e de redução das desigualdades sociais. Até aí, nenhum problema, nenhuma exclusão.
As classes médias alta, média e baixa segundo a renda familiar e os estilos de vida, seja a tradicional, sejam as modernas que emergiram a partir da década de 1970 em diante, portanto, durante a acelerada e prolongada expansão do capitalismo associado e internacionalizado, quando se inicia a globalização e a financeirização da economia, tipicamente, mês a mês: i) pagam IRPF de 27,5% ou a tributação sobre micro e pequenas empresas; ii) pagam mensalmente o Pano de Saúde da família (portanto, não se beneficiam do SUS); iii) em razão da predominante má qualidade do ensino e do aprendizado na escola pública, matriculam os filhos em escola particular e comprometem parte significativa da renda familiar com mensalidade escolar; iv) pagam prestação do financiamento para a compra da casa própria; v) pagam prestação de consórcio de veículo; vi) pagam IPVA, IPTU e seguro patrimonial; vii) procuram fazer uma reserva para férias da família e, se possível, uma poupança preventiva para situações emergenciais. Solidária, compreende e aprova as políticas públicas de estado de bem-estar social direcionadas aos mais desiguais, excluídos e pobres. Portanto, aprovam um programa como o “Bolsa-Família”, porquanto aguardem, com expectativa, quando o governo decidirá sobre a “porta de saída” para evitar que um programa tão fundamental enseje e encoraje oportunidade para a formação de uma “clientela estrutural” ou os chamados “marginalizados sociais permanentes”, segundo a velha e intuitiva “sociologia da marginalidade social”. Com efeito, esse é um risco real que vale a pena correr, até certo ponto, durante um certo tempo, vinculando a concessão, sempre, à matrícula, à frequência e ao desempenho escolar das crianças das famílias beneficiadas.
Ao mesmo tempo, as classes médias, em geral, em especial a classe média-média, observa que, “para o alto” o Congresso Nacional aprova isenções fiscais, os ricos e muito ricos pagam menos IRPF que elas, as classes médias, que o imposto não é progressivo conforme a renda, e que até mesmo um programa como “Minha Casa, Minha Vida” não oferece uma porta de entrada razoável para elas, as classes médias. O ponto de ebulição do incômodo, avolumando-se, teria ocorrido, como penso, quando se conjugaram três situações críticas e desagregadoras:
1ª) a partir do Mensalão e, após, com a irrupção da Lava Jato – Vaza Jato, objetivamente as classes médias saíram do incômodo à indignação, da indignação à ira, da ira ao protesto (Jornadas de Junho de 2013), do protesto ao voto contrário. Como penso, viram-se como “vitimizadas”, sensação que não raro engendra paixões e uma mentalidade negativista associada a um moralismo radical, sentencioso e, ao mesmo tempo, “justificador” de suas novas condutas políticas, algo próximo à crença;
2ª) em simultaneidade, as classes médias assistiram ao florescimento do fenômeno de formação de uma classe C média-baixa de consumo, proveniente da pobreza, com elevação de status, ao tempo em que elas, as classes médias, subjetivamente percebiam-se em situação social de “rebaixamento de status” (posição social comprada com outras). Da ira poderá irromper o ressentimento, uma paixão negativa e cega;
3ª) o ponto de inflexão teria ocorrido sobretudo a partir do midiático e espetacularizado julgamento do Mensalão e sua intencionalidade de colocar sobretudo o PT e, em geral, os políticos e a política, no pelourinho. Como agravante, o PT não fez autocrítica, vez que alguns poucos indivíduos entre as suas centenas de milhares de filiados, com efeito, erraram. A conexão entre ética e política, uma das marcas fundadoras do PT se rompera. Seguiu-se a isso, com óbvia premeditação, o ataque frontal ao PT e a intencionalidade de criminalizar o PT, como partido, e o então ex-presidente Lula, acusado, depois condenado, sem prova. A extrema direita civil e religiosa, a evangélica e a católica carismática, incumbiram-se desse papel. No meio do caminho aconteceu a recessão de 2015-2016, gerada fundamentalmente pela equivocada política econômica de hiperdesenvolvimentismo durante o segundo governo da presidente Dilma Rousseff. Subtraíram-lhe o direito de se superar. As classes médias empreendedoras de micro, pequenos e médios negócios, familiares ou não, e muitos empresários foram, de roldão, à acumulação de prejuízos, senão à falência.
O fato que fica é o de que, com efeito, porquanto os governos do PT tenham implementado ações que tanto beneficiaram as classes médias,[6] contudo, o PT não tem formulada uma política social e um programa econômico de elevação das condições materiais de vida das classes médias. Concentrara-se nos pobres e na classe C emergente, uma classe de consumo que, adiante, a partir de 2013, deixaria majoritariamente de votar no PT. O empreendedorismo prático, razoável, logo seria apropriado e absorvido pelo empreendedorismo ideológico (o indivíduo é tudo; a sociedade, nada! A pobreza está em você, que não empreende!) e este associou-se ao empreendedorismo teológico-evangélico, a neopentecostal Teologia da Prosperidade e seu par, a “Economia Sacrificial” (dízimo + sobredízimo). A ocasião já descortinara a chegada de um tempo de generalização de mudanças no mundo solvente do trabalho, como a pejotização, uberização, terceirização, privatizações, emprego eventual e seus rastros de incertezas e de insegurança face ao futuro. O PSDB arruinara-se, ao tempo em que o PT se encontrava sob cerco, de 2013 a 2022. As classes médias então ouviram o canto de sereia do populismo associado ao extremismo de direita e seu discurso falso-moralista e denunciatório das esquerdas. Seguiu-se o desencanto. É um grave equívoco de apreciação julgar que as classes médias são constitutivamente de direita. Como penso, as classes médias são constitutivamente democráticas e republicanas. Querem política associada à ética e boas práticas e bem-estar. O que é razoável. Posicionam-se com naturalidade no campo político plural formado por direita democrática, o centro e a centro-esquerda democrática. Aceitam o reformismo moderado.
Finalizo com a pergunta e resposta:
Afinal, quem somos, nós, as centenas de milhares de filiados ao PT no país? Predominantemente, classes médias!
[6] Reproduzo, aqui, o instigante e excelente comentário autoral de um professor de História da rede pública estadual, em Taiobeiras, Norte de Minas, a 700 km da Capital, sociólogo pela Unimontes, poeta, escritor, mestre em Políticas Públicas pela Flacso/Fundação Perseu Abramo, e doutorando em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Ele escreveu: “(…) a esquerda brasileira também errou, principalmente por não ter disputado a hegemonia ideológica durante os anos dourados do lulismo (segundo governo Lula). Houve um raciocínio acomodatício que se conformou apenas com as quatro vitórias consecutivas em eleições presidenciais. O espaço ideológico junto à classe média ficou vazio. A çlasse média, ela própria, beneficiária de tantas políticas públicas inclusivas dos governos petistas, como o PROUNI, o SISU, o Brasil Sem Fronteiras, a valorização real do salário-mínimo, o estímulo aos concursos públicos, o aumento de vagas em universidades públicas e em institutos federais, além das ações de cunho moralizante, como o fortalecimento da Controladoria Geral da República, do MPF e a autonomia da Polícia Federal”. In: Nascimento, Levon – Torpes Labéus : Diário da Pandemia Fascista Brasileira (2013-2023) / Levon Nascimento. – Rio de Janeiro. RJ : Autografgia, 2023. 338 p. Pág. 77.
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Os parlamentares do PT e as emendas milionárias: onde estão as boas e exemplares práticas de diferenciação em relação às direitas?
Sobre esse assunto, já comentado no “Texto 4”, apresento proposta de minha autoria:
- Doravante o senador, o deputado federal e o deputado estadual do PT deverão “transferir” contabilmente ao partido, em cada Estado federado e através do respectivo Diretório Estadual, 50% (cinquenta por cento) do valor total anual das emendas a que cada parlamentar tem direito, por lei. O montante acumulado corresponderia a algo semelhante a uma “emenda de bancada”, por exemplo, vez que os parlamentares são os agentes públicos que respondem pela prestação de contas. Isso estabelecido, assegurada uma eficiente gestão técnico-administrativa a destinação desses recursos contribuirá para reduzir os riscos de concentração excessiva de poder econômico nas mãos do detentor de mandato, isso implicando, como argumentamos, na redução dos riscos de formação de oligarquias políticas de poder e de privilégios no interior do partido. Essa medida é indispensável e inadiável para se ampliar e consolidar a coesão interna no partido, elevar a confiança mútua, proporcionar a formação de novas lideranças em nível local e o fortalecimento institucional e político dos diretórios municipais, além de contribuir para a formação e projeção à vida parlamentar de novas lideranças. A medida aplicar-se-á automaticamente aos deputados estaduais e, no que couber, aos vereadores nos municípios onde houver a prática da alocação de recursos orçamentários na forma de emenda parlamentar. Portanto, tratar-se-ia de uma regra universal na esfera do PT.
- Através da Executiva Nacional, o Diretório Nacional poderá indicar a alocação de até a quinta parte dos 50% do valor das emendas transferido contabilmente ao partido para alocação a partir das indicações das bases, para atendimento eventual a alguma ação de alta relevância.
De risco de oligarquização e de semeadura de desconfiança interna entre os membros do partido e entre bases e lideranças parlamentares passaríamos a fato se o deputado e/ou os dirigentes detiverem o controle da distribuição dos recursos partidários do Fundo Eleitoral e decidirem soberanamente sobre a sua alocação ou distribuição seletiva ou preferencial a determinados candidatos. Nessa hipótese, haveria privilégio e desigualdade de oportunidades, o que iria gerar a percepção de injustiças no meio de nós.
Isso esclarecido, seguem-se as minhas propostas em busca da superação dessa grave distorção que, como penso, opõe ética e política:
- Doravante, os recursos do Fundo Eleitoral serão destinados à campanha de candidato a presidente da República, às campanhas de candidatos a governador e às campanhas de candidatos ao Senado, à Câmara dos Deputados e às Assembleias Legislativas, assim como às campanhas de candidatos a prefeito e a vereadores, em conformidade com critérios estabelecidos em congresso nacional do partido. Naturalmente, deverá ser observada uma ordem de prioridades políticas, encimada pela candidatura a presidente, seguindo-se as candidaturas de governadores e de senadores, passando-se às candidaturas de deputados federais e, por fim, as de deputados estaduais, no caso das eleições gerais. Entretanto, de alguma forma, ainda que com razoável diferenciação, à maneira de uma regra, todos devem ser contemplados, segundo decisões colegiadas do partido, observadas as regras fixadas em congresso ou conferência nacional.
- As campanhas eleitorais do partido para deputado federal, deputado estadual e vereador deverão pautar-se pelo princípio de solidariedade e de maximização da conquista do voto através da formação de chapas completas de candidatos competitivos, distribuídos em todas as regiões e subrregiões do território. A democratização de candidaturas internas no partido haverá de proporcionar-lhe maior oportunidade para o crescimento das bancadas, além de incentivar a formação e a projeção de novas e de mais lideranças políticas, melhor distribuídas geograficamente. A mencionada concentração de poderes é um dos fatores que concorrem para inibir e desencorajar a vinda de jovens e a formação de novas lideranças no partido. Em Minas Gerais, nas eleições parlamentares de 1982 essa regra assim foi decidida e razoavelmente implementada, ainda que não observada por todos, a chamada “Campanha Eleitoral Solidária”.
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Este é um artigo de opinião. O posicionamento do autor não representa necessariamente as ideias do PT-MG.